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Bárbaros e Ameríndios em MundoBraz!

 

Um fio vermelho entre a antropologia imanentista de Viveiros de Castro e a ontologia constitutiva de Toni Negri

di PETER PÁL PELBART

Cada vez mais se impõe a evidência inegável: o tempo linear, sucessivo, cumulativo, direcionado, progressivo, homogêneo, encadeado, cronológico, é apenas uma das formas da experiência do tempo. A filosofia do último século dedicou um esforço considerável na problematização dessa forma, de Heidegger a Benjamin, de Bergson a Deleuze. Em vários domínios extra-filosóficos assistimos igualmente à exigência de pôr em questão a flecha do tempo, da psicanálise à antropologia, da história à própria política. Com toda a perturbação que cada um desses domínios introduziu na ordem do tempo, ainda assim vários deles não conseguiram, nas suas formulações majoritárias, abrir mão de alguma seta do tempo, ou às suas coordenadas maiores: a tripartição diacrônica (em passado, presente e futuro), a estrutura do antes/depois, um sentido do tempo.

Paralelamente, a experiência a mais cotidiana das últimas décadas produziu um achatamento da perspectiva temporal, que nos lança numa unidimensionalidade de tédio e fadiga, de repetitividade e esvaziamento, indicando um aplainamento do tempo. Não faltam críticas de todas as partes ao desmoronamento da perspectiva temporal, com seus perigos, tais como a deshistoricização, o congelamento cínico no presente contínuo, um presente em que afinal nada acontece a não ser a reiterada não-existência de eventos, ou ainda esta cultura espetacular e narcísica que recicla todos os tempos e os hibridiza como indiferenciação, obedecendo ao ditame elementar do próprio mercado fundado no valor de troca e não no valor de uso, no equivalente geral de tempo. Alguns, como se sabe, insistem no fato de que o culto do passado característico das últimas décadas, esse surto da memória, seria apenas uma compensação frente à aceleração técnica atual, espécie de resistência à sincronicidade dominante. Infelizmente, grande parte dessas críticas tem uma posição saudosista em relação ao esquema temporal anterior, que garantia uma teleologia, uma espessura temporal, um sentido da história. Seja como for, todos esses elementos que eu elenquei de maneira rapsódica, a saber: predominância do tempo cronológico, de uma seta do tempo, experiência achatada do tempo, desmoronamento da perspectiva temporal, nos levam a admitir com Huyssen que vivemos uma verdadeira transformação na estrutura da temporalidade moderna em si.

Desde um ponto de vista mais genérico, sabemos que há como que uma geografia do tempo que varia ao longo das culturas, conforme o sublinhou Krysztof Pomian. O topo do tempo pode estar localizado mais no passado, como na antiguidade que valorizava a origem, ou mais vetorizado pelo futuro, como na modernidade que reverencia o progresso, ou é aspirada pelo acúmulo infinito da flecha do capital. Mas mesmo esse desenho parece um pouco simplório frente ao que se nos apresenta hoje, e que alguns chamam de hipertempo. Não se trata apenas de uma sincronicidade universal, como o deploram os tecnófobos de vários matizes, marxistas, heideggerianos, baudrillardianos. Também assistimos à gestação de novas condutas temporais, capazes de alterar profundamente o estatuto do tempo e sua experiência. De fato, não mais estamos diante de uma mera alteração no sentido da flecha do tempo, como há algumas décadas atrás, mas de uma explosão da flecha do tempo. O que está hoje em pauta, na questão do tempo, e daí nossa grande perturbação, é a abolição da idéia mesmo de uma flecha, de uma direção, de um sentido do tempo. Isto, porém, não deveria ser lido apenas como um aplainamento esvaziado, ou uma opacificação niilista. No avesso disso, revela-se uma multiplicidade de flechas (mas aí já seria preciso inventar outro nome), uma multiplicidade de direções (mas aí já seria preciso usar uma outra palavra), uma multiplicidade de sentidos (mas aí já seria preciso inventar outros termos). É o que se poderia ler a partir da idéia de um rizoma temporal. Não se trata de uma linha do tempo, nem de um círculo do tempo, mas tampouco de uma flecha invertida, ou quebrada, mas de uma rede temporal, que implica uma navegação multitemporal num fluxo aberto, com os devires que aí se gestam, como diz Deleuze..

Eu resolvi usar essa via de entrada um tanto obtusa, a respeito do tempo, para falar do livro de Giuseppe Cocco, MundoBraz, o devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo[1]. Pois o leitor desse ensaio vê inicialmente problematizado o mito do futuro, por tanto tempo tão pregnante entre nós. Seja o Brasil como um país do futuro, seja o futuro eurocêntrico que nos era prometido, pelo desenvolvimento, pelo crescimento, pela industrialização (43). A essa obsessão, Giuseppe opõe a exclamação de Eduardo Viveiros de Castro: “Sempre disseram que o Brasil era o país do futuro. Coisa nenhuma, o futuro é que virou Brasil!”. O sentido dessa exclamação é ambíguo, como o sublinha Giuseppe. Por um lado poderia parecer depreciativa, caso remetesse à brasilianização do mundo, isto é, a generalização da desigualdade, da violência, da fragmentação social, da segmentação espacial, do racismo, da favelização (segregação e auto-segregação das elites), que tanto caracterizaram a modernização brasileira, e que reaparecem na ressaca dos anos de ufanismo neoliberal, para surpresa geral, por toda parte, nos países ditos desenvolvidos inclusive, justamente na pós-modernidade globalizada. Por outro lado, a mesma expressão poderia ser entendida no seu viés afirmativo, positivo – há algo daqueles processos ou ingredientes tão próprios ao Brasil que se impõem como vetores da mundialização ou poderiam servir para pensá-los – a saber, a hibridação, a mestiçagem, a antropofagia, o perspectivismo ameríndio.. Seja como for, é preciso dizê-lo logo de cara, a própria globalização é bifronte. Por um lado ela se apresenta como o futuro único e inevitável, segundo um tempo linear ao qual estaríamos todos submetidos, quer gloriosamente, quando destinados ao paraíso do progresso e do consumo, quer tristemente, quando lançados como fragmentos sociais e espaciais à mercê de um progresso que os modula “nas representações abstratas do mercado”, como diz Giuseppe.  Em contrapartida, a globalização pode apresentar-se como mundialização, quando significa abertura “à multiplicadade dos mundos possíveis”, ou seja, quando na hibridização se produzem devires laterais, trocas de perspectivas, novos valores, sentidos, possíveis, outros espaços-tempo, múltiplos mundos. A mundialização, nesse segundo viés, já não é compreendida como homogeneização, porém como heterogênese. É nessa linha que se pode entender o eixo do trabalho de Giuseppe, quando propõe esse monstrengo conceitual chamado MundoBraz. A alternativa, portanto, é esta: quer a globalização é empreendida e concebida como perda de mundo, como imundo, im-mundo, imundialização, nas palavras de Jean Luc Nancy, quer como mundialização, criação de mundo, proliferação ontológica e axiológica, transvaloração de todos os valores. Seja num único futuro para todos, e portanto um único mundo possível, com as óbvias segmentações que esse futuro único determina, pois não estão todos do mesmo lado desse mesmo futuro, claro. Ou, ao contrário, subtrair-se ao domínio da flecha do tempo, do suposto sentido da história, glorioso ou sinistro, reabrindo-a em várias direções. Ao pensar uma ferramenta conceitual para acompanhar essa segunda via, Giuseppe explicita o pré-requisito: “precisamos substituir de vez a noção de “futuro” pela noção de “devir”.” Ou, em outras palavras, trata-se da “passagem do tempo linear do futuro para o tempo intensivo do devir”. Como se vê, é todo um desafio, para não dizer um programa, filosófico e político.

Décadas atrás, Giorgio Agamben formulava esse problema a seu modo: “A toda concepção de história está associada uma certa experiência do tempo, que lhe é inerente, que a condiciona e que se trata, precisamente, de revelar. Do mesmo modo, toda cultura é primeiramente uma certa experiência do tempo, e não há cultura nova sem transformação dessa experiência. Por isso, o primeiro objetivo de uma verdadeira revolução jamais é de “mudar o mundo” pura e simplesmente, mas também, e sobretudo, de “mudar o tempo”. O pensamento político moderno, que concentrou sua atenção na história, não elaborou uma concepção de tempo correspondente. Mesmo o materialismo histórico omitiu-se, até o presente momento, de elaborar uma concepção de tempo que fosse à altura de sua concepção da história. Esta omissão, sem que ele desconfiasse, obrigou-o a recorrer a uma concepção do tempo que domina a cultura desde há séculos; de modo que coexistem nele uma concepção revolucionária da história e uma experiência tradicional do tempo. A representação vulgar do tempo, a de um continuum pontual e homogêneo, acabou desbotando o conceito marxista de história”[2]. Deixo de lado o messianismo benjaminiano de fundo, para reter uma única pergunta, decorrente de uma tal concepção hegemômica do tempo: Como desvencilhar-se dessa tirania do futuro?

Bruno Latour levantou a hipótese intrigante de que nossa certeza de que o tempo passa, ou vai ao futuro, nos vem da Constituição moderna, ou seja, desta obsessão com a ruptura entre modernos e pré-modernos, dessa suposição de que se pode abolir o passado, enterrá-lo, apagá-lo através de uma revolução radical, com o que as repetições e ressurgências e retornos parecem incompreensíveis ou apenas recuos retrógrados (69). Antes dele, Michel Serres já nos oferecia uma imagem embrulhada do tempo: o tempo, dizia ele, é como uma chama num braseiro, aqui cortada, ali vertical, móvel, inesperada: ele tem pontos de parada, rupturas, poços, chaminés de aceleração fulminante, rasgamentos, lacunas.. ele passa e não passa, tem contracorrentes e turbulências. Como diz ele: “qualquer acontecimento da história é multitemporal, remete ao revolvido, ao contemporâneo e ao futuro simultaneamente. Tal ou qual objeto, esta ou aquela circunstância, são pois policrônicas, multitemporais, fazem ver um tempo amarrotado, multiplamente dobrado”[3]. Serres diria: nem métrico nem geométrico, seria preciso conceber um tempo topológico. Assim, fatos que na linha do tempo seriam distantes (os aimarás e o gás, os tupis e as dinâmicas da mundialização, para voltar aos exemplos de Giuseppe), estão intimamente ligados. Enfim, toda a noção de novidade aí deve ser repensada, bem como a idéia de revolvido, ou de passado ou de futuro. O futuro, nessa acepção, já não é um segmento do tempo situado no final da linha do tempo, ele deixa de ser o topo do tempo, para tornar-se uma dimensão do próprio presente, com o que, justamente, ele deixa de ser pensado como futuro – antes como extemporâneo, intempestivo, acontecimento, devir – em todo caso, longe de qualquer teleologia.. Latour teve uma definição ousada: o tempo é o resultado provisório da ligação entre os seres, é resultado de uma seleção. Nunca avançamos nem recuamos, selecionamos ativamente elementos pertencentes a tempos diferentes (75).

Giuseppe, no seu esforço de situar essa mutação contemporânea do tempo na concretude histórica, diz:  “Assim, com o muro de Berlim, caiu um conjunto de visões do mundo, poderíamos até dizer de uma determinada visão do futuro do mundo, e não significou a afirmação linear da hegemonia de um dos modelos..”(44) E ele explicita: “Se substituirmos ao tempo linear do futuro o tempo rizomático e evenemencial, ao devir-Brasil do mundo corresponde um gigantesco leque de possibilidades”(77). Num rizoma, como se sabe, entra-se por qualquer lado, cada ponto se conecta com qualquer outro, não há início nem fim, centro nem periferia, unidade nem totalidade, apenas um meio, por onde ele cresce e transborda. Um rizoma é feito, pois, de conexões, devires laterais, direções móveis. Assim, o devir-Amazônia do Brasil, ou o devir-Brasil do mundo, não significam qualquer regressão nem avanço numa suposta linha evolutiva, mas um movimento singular com plena positividade.

Há contudo um desafio, nessa interpretaçao, que Giuseppe explicita do seguinte modo: “É preciso, pois, construir um ponto de vista que nos permite dar qualificação ao tempo – o tempo, em sua ontologia de produção de vida” (48). A marca negriana é aqui indiscutível – é toda a relação entre tempo e vida que Negri se dispõe a repensar, sobretudo no contexto pós-fordista, onde a produção de vida já não está subordinada à mensuração temporal (como dizia Marx, o homem, carcaça do tempo), mas  fundada no inesgotável desse bios da multidão, no seu misto de inteligência coletiva, de afetação recíproca, de criação e recriação biopolítica. Nesse âmbito o tempo deixa de ser medida do trabalho para tornar-se ele mesmo desmedida, desmesura, excesso, excedente de ser, abundância, liberação. O que tem implicações políticas nada desprezíveis: deserta-se as reivindicações de subordinação à forma-tempo, ao assalariamento, à forma-trabalho, às coerções do capital e à forma-política ou à forma-Estado, com suas disjuntivas como emprego-desemprego, exclusão-inclusão, em favor daquilo que o regime atual não cessa de tentar capturar e governar: a “atividade livre e criativa de singularidades que se tornam produtivas independentemente da relação de capital”.

Em outros termos: quando o tempo de vida e o tempo de trabalho se misturam “em uma circulação que constitui o novo espaço produtivo e tornam toda medida completamente arbitrária”, quando o trabalho vivo consegue tornar-se produtivo sem passar pela relação salarial, e pela subordinação ao trabalho morto cristalizado no capital fixo (157), é um novo horizonte de exigências que se coloca, onde aparece o privilégio da “mobilização produtiva da esfera da reprodução como terreno de constituição autônoma, antagônica à ordem disciplinar da fábrica” (155), onde a resistência “torna-se uma força ontológica” (Negri), onde luta, produção e invenção de formas de vida, bem como a criação de valor, tornam-se uma e única coisa. Para Giuseppe, a tradução disso em termos do Brasil se dá nos seguintes termos. “Aqui o devir-Brasil do mundo aparece como horizonte aberto dos possíveis, da potência produtiva que, por exemplo, encontramos no êxodo rural, na autoconstrução do espaço urbano, na música negra e na cosmologia ameríndia” (157). Seria peciso esmiuçar cada um desses exemplos, o que extrapola meu espaço e competência. E com todo o pudor e constrangimento, dada minha incompetência absoluta na matéria antropológica, eu gostaria de me deter por um segundo nesse último ponto, na medida em que ele aporta uma economia da alteridade apta a iluminar nosso contexto de maneira menos sombria e homogêna do que o faz Agamben, quando lança a sombra de seu conceito de vida nua sobre a totalidade do planeta e a projeta retroativamente sobre o conjunto da história, remontando até os gregos, ao arrepio das descontinuidades que Foucault sempre fez questão de preservar. Contrapondo-se à redução biopolítica da vida à vida nua empreendida pelo suposto estado de exceção planetário, Giuseppe mobiliza a contribuição de Eduardo Viveiros de Castro: “A vida é sempre vestida, mesmo quando aparecia desnuda aos conquistadores que não conseguiam enxergar suas “roupas” por se preocuparem apenas em saber se os “índios” tinham ou não uma alma. A vida é o corpo “feito”, literalmente fabricado dos ameríndios” (186). Essa nudez, portanto, é apenas uma miragem ocidental, pois a vida já é relação, devir, afetação, poder de afetar e de ser afetado, potência, diferenciação, variação, imanência, como diz Deleuze. Ao invés de vida nua, uma vida. Claro que o biopoder tende a reduzí-la à sua manipulável dimensão biológica, mas porque deveria a teorização assumir o ponto de vista do poder, nem que seja supondo uma dialética reativa e a subjetivação correspondente, ancorada ainda e sempre numa lógica da negatividade? Ao contrário, seria preciso pensar justamente a positividade do devir, da relação, “a verdade da relação e não a relatividade do verdadeiro”, como o fez a antropologia imanentista, ao “comparar diferentes modos de relação”, ao pensar a relação imanente aocm a alteridade, sem dialética, mas antes num jogo que produz diferenças intensivas, ao mostrar, como disse Viveiros de Castro, sociedades cujo (in)fundamento é sua relação aos outros, ou como disse Clifford, grupos para os rquais a troca, não a identidade, é o valor fundamental a ser afirmado – alteridade como possibilidade de autrotransfiguração, a própria cultura como um dispositivo constituinte de processamentos de crenças alheias. Ou como o fez a filosofia, à sua maneira, ao sublinhar a primazia da relação, numa tradição que remonta ao empirismo e que Deleuze retoma, segundo a qual a relação é exterior aos seus termos, ou mais radicalmente, até mesmo anterior aos termos que ela põe em relação, se seguimos a gênese proposta por Simondon. Em todo caso, o que é a relação, no caso daquilo que Castro nos oferece no campo da antropologia, por exemplo entre homens e animais? São os pontos de vista diversos que entram em conexão e se alternam, se trocam, se intercambiam, num embate agonístico. Ou como no caso da antropofagia, a absorção do outro e o devir-outro em que essa absorção implica. Pois em última instância, como o sublinhou Deleuze a partir de Leibniz e Nietzsche, não se deve partir dos sujeitos dados, porém dos pontos de vista a partir dos quais os sujeitos são possíveis. Ou como o diz Castro: “Todo ser a que se atribui um ponto de vista será sujeito, espírito; ali onde estiver o ponto de vista, também estará a posição do sujeito. O ponto de vista cria o sujeito, será sujeito quem se encontrar agenciado ou ativado pelo ponto de vista” (Castro, 2002, cit p 184) Um mundo constituído por pontos de vista é todo o contrário de um universo supostamente autônomo, contemplado a partir de diferentes perspectivas. Já Nietzsche o havia afirmado, e o sentido de sua experimentação filosófica não é outro, na contramão da unidade ontoteológica antropomórfica que ele combate sem descanso, através de sua ousada circumnavegação filosófica: ter o maior número possível de olhos e afetos, experimentar todas as perspectivas, desde que cada perspectiva, interpretação, sentido, valor que lhe correspondem, provenha de uma posição vital, de uma formação de domínio, de um corpo, de uma força que pede passagem e se afirma. E como já Leibniz o afirmava, não existe um mundo fora do ponto de vista que o expressa. O resultado desse perspectivismo levado às ultimas consequencias, que o Deus de Leibniz não suportou, é que não há universo, mas multiverso, onde coexistem diversos mundos incompossíveis. É no horizonte dessa multiplicidade radical, desse mundo explodido, jamais subsumível a qualquer unidade ontológica, que uma outra política do pensamento é possível, e uma outra política tout court é desejável, chame-se a isso de micropolítica ou de biopolítica. É no rastro de uma tal diferenciação incessante, dessa singularização irrefreável, e da comunicação tensa e intensa entre elas, que a questão da alteridade pode ser retomada, ao arrepio do monoteismo filosófico, político e econômico ainda vigente.

É talvez nessa zona ontológica, e tomo o sentido zona na sua dupla acepção, que Giuseppe enxerga um “fio vermelho” entre a antropologia imanentista de Viveiros de Castro e a ontologia constitutiva de Toni Negri (195), num esforço de construir um “estatuto ontológico da relação”, que ofereceria uma “alternativa ontológica” apta a potencializar “um horizonte de luta antimoderno: ou seja, em termos de perspectivismo ao qual se juntam o relacionismo e a metamorfose” (184). É a partir de uma tal ontologia a um só tempo constitutiva e diferencial, da multiplicidade e da proliferação, que Giuseppe dá seu belo salto na dimensão continental e geopolítica:  “O devir-aimará da Bolívia não significa que todos os bolivianos se tornam aimarás; a própria Bolívia – sua constituição política “plurinacional” – está implicada nas dinâmicas das diferenças indígenas; e isso na medida em que os próprios aimarás são implicados em novas relações (por exemplo, pós nacionais) que os fazem devir em outro agenciamento- aimarás-gás natural-assembléia constituinte.” (203) É claro que tais devires implicam, forçosamente, não apenas uma troca de pontos de vista, e/ou uma hibridação, por vezes até monstruosa, como no caso de El Alto, mas expressam ou acarretam novas formas de vida no interior desses novos agenciamentos, a partir de um excedente de ser, numa ruptura da temporalidade, com seus efeitos políticos evidentes, como se constata no caso da derrota da oligarquia centenária boliviana, e sua irradiação possível no continente. “O devir-aimará da Bolívia é assim um devir-Bolívia do Brasil e um devir-índio da Argentina: uma troca de trocas de ponto de vista” (205) Giuseppe brinca, a partir daí, com vários agenciamentos. Retomando um gracejo de Castro: Se Lenin inventou o socialismo como agenciamento entre soviets, taylorismo e eletricidade, se poderia dizer da Bolívia pós-nacional: índios aimarás-El Alto-gás natural”. Ou o ponto de vista Tupi como matriz de relação com a alteridade, devoração, deglutição, pilhagem, incorporação, devir-outro, máquina de guerra “contra o colonialismo interno que trata os povos indígenas como obstáculos à padronização da nacionalidade”. Com o que Giuseppe conclui: “A resposta que a América Latina tem de dar à alienação cultural é aprofundar ainda mais a mestiçagem e a hibridação com os fluxos mundiais” (236). Não se trata nem de um ufanismo inocente que repisaria os mitos da reconciliação racial ou nacional, nem uma apologia da harmonia multiculturalista, mas no avesso disso, a constatação de que o contexto de mundialização é um terreno de luta, de multiplicação, de proliferação, de diferenciação, de processualidade. A própria mestiçagem ou hibridação não podem ser concebidas como solução ou como desfecho, mas campo agonístico. Em todo caso, o devir-mundo do Brasil é diferente do que o encontro do Brasil com seu futuro ou mesmo com sua história, menos ainda com sua identidade.

Há décadas atrás, Deleuze aprofundou uma distinção que ele encontrou, entre outros, em Nietzsche, em Péguy, em Foucault, mesmo se com termos distintos, entre História e Devir. Segundo tal perspectiva, o devir é um processo ou um acontecimento que desvia da história, que salta para fora dela, que escapa de seus trilhos e de sua determinação. É ali que se empreende uma experimentação, que se inaugura um novo espaço-tempo, que se desprende de uma teleologia. A meu ver, Giuseppe conseguiu nesse livro, que é um arrastão conceitual, e que constitui um pequeno e atraente monstrengo político, onde Marx e os arawetés rolam abraçados, onde Negri e os aimarás dançam sob a flauta de Deleuze, onde o próprio leitor é tomado num devir-negro, num devir-índio, num devir-mundo, forjar elementos para uma pequena máquina de guerra de nossos tempos. Sem bancar o juiz supremo, que desde o tribunal da razão ou da história contempla, julga e condena o curso do mundo, num deleite em denunciá-lo ou demonizá-lo, num texto sem ressentimento nem rancor, sem a ironia fácil que esmaga de um só golpe os sentidos que pipocam por toda parte, esse livro experimenta, a partir de um construtivismo ontológico materialíssimo, as linhas de fuga que nos atravessam no presente, esgarçando-o.


[1] Giuseppe Cocco, MundoBraz, o devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo, Rio de Janeiro, Rocco, 2010.

[2] Giorgio Agamben, Enfance et histoire, Paris, Payot&Rivages, 1989, p 114.

[3] Michel Serres, Eclaircissements, Paris, Flammarion, 1992, p. 92.

 

 

 

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